domingo, 15 de dezembro de 2013

A esperança ernst-blochiana e a esperança bergoglio-franciscana


A esperança ernst-blochiana e a esperança bergoglio-franciscana


           Sobre a polêmica suscitada pela primeira exortação apostólica do Papa Francisco, ouso dizer que houve sim o impacto do pensamento marxista, e vejo isso de forma positiva. Por outro lado, foi um impacto indireto e de uma determinada corrente marxista, mais especialmente do marxismo de Ernst Bloch. Para compreender melhor, reproduzo abaixo alguns trechos de outro texto meu (Utopias esquecidas).

“... o que Münster quer sugerir também é que há pontos de contatos entre expressionismo, messianismo e marxismo. A sinergia entre três elementos é uma das marcas principais do materialismo de Bloch. A emotividade, a revolta, os desejos, as esperanças e utopias encontram um terreno mais sóbrio dentro do marxismo para se desenvolverem”.

“Para Bloch, há na Bíblia um potencial subversivo. Uma leitura profunda e crítica do texto bíblico confirmariam que a história do mundo e a história da salvação formam uma única história e o que o reino prometido não é apenas espiritual, mas também terreno. O Êxodo pode ser compreendido não como uma fuga geográfica, mas como modelo de superação de um estado de injustiça – nesse sentido, há uma grande consonância entre a Bíblia e movimentos populares contra a ordem.”

O entendimento do potencial revolucionário existente na Bíblia e do caráter eminentemente político do evangelho – calcados na esperança – foi bem acolhido pelos teólogos Jürgen Moltmann, Johann Baptist Metz, Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff”.

Abaixo, alguns trechos da primeira exortação apostólica de Francisco:

Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo”.

“A verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre história”.

“Acreditamos no Evangelho que diz que o Reino de Deus já está presente no mundo, e vai-se desenvolvendo aqui e além de várias maneiras.”

“Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai.”

A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais”.

“É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projectos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria.”

Este último trecho me fez lembrar de uma descrição sobre Ernst Bloch feita pela filosofa Suzana Albornoz:

“Bloch é um construtor de catedrais que pode pertencer melhor à maçonaria dos utopistas do que ao concilio dos pontífices das igrejas filosóficas da modernidade – cuja fé é o relativismo, cujo deus é o nada, cuja moral é a critica ao conhecimento, cuja práxis é a analise da linguagem”.

Outros trechos do texto de Francisco me fizeram lembrar de Metz (da questão da lembrança e da missão); de Moltmann (da questão da esperança); de Paulo Freire (do possível viável e as situações limites); de Pannenberg (da questão da história) e de Bloch (das questões da utopia, esperança e do Reino de Deus no mundo).

Veja a diferença com relação à Bento XVI, que usa o termo utopia com valor negativo:

“... é necessária a Palavra que comunique aquilo que o próprio Senhor nos disse; por outro, é indispensável dar, com o testemunho, credibilidade a esta Palavra, para que não apareça como uma bela filosofia ou utopia, mas antes como uma realidade que se pode viver e que faz viver.” (Verbum Domini).

“Amadurecida durante toda a história da Igreja, esta doutrina (Social da Igreja) caracteriza-se pelo seu realismo e equilíbrio, ajudando assim a evitar promessas enganadoras ou vãs utopias.” (Sacramentum caritatis).

“A humanidade inteira aliena-se quando se entrega a projectos unicamente humanos, a ideologias e a falsas utopias.” (Caritas in veritate).

Abaixo, Bento XVI refuta tanto o Reino como existente no além quanto como existente em um futuro terreno. Para ele, o verdadeiro Reino é possível de se alcançar no íntimo de cada um. Portanto, o caminho para o Reino e o próprio Reino é individual e não coletivo. Ao homem não cabe a construção do Reino terreno - apenas devemos rezar e esperar.

“O seu reino não é um além imaginário, colocado num futuro que nunca mais chega; o seu reino está presente onde Ele é amado e onde o seu amor nos alcança.” (Spe Salvi).

“Certamente, não podemos « construir » o reino de Deus com as nossas forças; o que construímos permanece sempre reino do homem com todos os limites próprios da natureza humana.” (Spe Salvi).

Percebe-se então que a saída de Bento XVI e a entrada de Francisco no Vaticano foi uma guinada à esquerda. Espero ansiosamente os novos textos de Bergoglio, pois “o que se sonhava e aspirava ontem, precisa existir amanhã, e esta saudade, não conseguiram abafá-la as trevas da opressão, de modo que, por trás do deserto, aguarda Canaã ao viajante, adornada em inédito esplendor” (Ernst Bloch).


Daniel M. Vilela