A esperança ernst-blochiana e a esperança
bergoglio-franciscana
Sobre a polêmica suscitada pela primeira exortação apostólica do Papa Francisco, ouso dizer que houve sim o impacto do pensamento marxista, e vejo isso de forma positiva. Por outro lado, foi um impacto indireto e de uma determinada corrente marxista, mais especialmente do marxismo de Ernst Bloch. Para compreender melhor, reproduzo abaixo alguns trechos de outro texto meu (Utopias esquecidas).
“... o que Münster quer sugerir
também é que há pontos de contatos entre expressionismo, messianismo e
marxismo. A sinergia entre três elementos é uma das marcas principais do
materialismo de Bloch. A emotividade, a revolta, os desejos, as esperanças e
utopias encontram um terreno mais sóbrio dentro do marxismo para se
desenvolverem”.
“Para Bloch, há na Bíblia um
potencial subversivo. Uma leitura profunda e crítica do texto bíblico
confirmariam que a história do mundo e a história da salvação formam uma única
história e o que o reino prometido não é apenas espiritual, mas também terreno.
O Êxodo pode ser compreendido não como uma fuga geográfica, mas como modelo de
superação de um estado de injustiça – nesse sentido, há uma grande consonância
entre a Bíblia e movimentos populares contra a ordem.”
“O entendimento do potencial
revolucionário existente na Bíblia e do caráter eminentemente político do
evangelho – calcados na esperança – foi bem acolhido pelos teólogos Jürgen
Moltmann, Johann Baptist Metz, Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff”.
Abaixo, alguns trechos da primeira exortação
apostólica de Francisco:
“Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo”.
“A
verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre
história”.
“Acreditamos
no Evangelho que diz que o Reino de Deus já está presente no mundo, e vai-se
desenvolvendo aqui e além de várias maneiras.”
“Os
cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do
horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai.”
“A proposta é
o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que
reina no mundo. Na medida em
que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um
espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso,
tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências
sociais”.
“É
perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma. Por isso, há que
postular um terceiro princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe
evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os
totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projectos mais
formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem
bondade, os intelectualismos sem sabedoria.”
Este
último trecho me fez lembrar de uma descrição sobre Ernst Bloch feita pela
filosofa Suzana Albornoz:
“Bloch
é um construtor de catedrais que pode pertencer melhor à maçonaria dos
utopistas do que ao concilio dos pontífices das igrejas filosóficas da
modernidade – cuja fé é o relativismo, cujo deus é o nada, cuja moral é a
critica ao conhecimento, cuja práxis é a analise da linguagem”.
Outros
trechos do texto de Francisco me fizeram lembrar de Metz (da questão da
lembrança e da missão); de Moltmann (da questão da esperança); de Paulo Freire
(do possível viável e as situações limites); de Pannenberg (da questão da
história) e de Bloch (das questões da utopia, esperança e do Reino de Deus no
mundo).
Veja
a diferença com relação à Bento XVI, que usa o termo utopia com valor negativo:
“... é necessária a
Palavra que comunique aquilo que o próprio Senhor nos disse; por outro, é
indispensável dar, com o testemunho, credibilidade a esta Palavra, para que não
apareça como uma bela filosofia ou utopia, mas antes como uma realidade que se
pode viver e que faz viver.” (Verbum Domini).
“Amadurecida durante
toda a história da Igreja, esta doutrina (Social da Igreja) caracteriza-se pelo
seu realismo e equilíbrio, ajudando assim a evitar promessas enganadoras ou vãs
utopias.” (Sacramentum caritatis).
“A humanidade
inteira aliena-se quando se entrega a projectos unicamente humanos, a
ideologias e a falsas utopias.” (Caritas in veritate).
Abaixo, Bento XVI
refuta tanto o Reino como existente no além quanto como existente em um
futuro terreno. Para ele, o verdadeiro Reino é possível de se alcançar no
íntimo de cada um. Portanto, o caminho para o Reino e o próprio Reino é
individual e não coletivo. Ao homem não cabe a construção do Reino terreno - apenas devemos rezar e esperar.
“O seu reino não é
um além imaginário, colocado num futuro que nunca mais chega; o seu reino está
presente onde Ele é amado e onde o seu amor nos alcança.” (Spe Salvi).
“Certamente, não
podemos « construir » o reino de Deus com as nossas forças; o que construímos
permanece sempre reino do homem com todos os limites próprios da natureza
humana.” (Spe Salvi).
Percebe-se então que
a saída de Bento XVI e a entrada de Francisco no Vaticano foi uma guinada à esquerda.
Espero ansiosamente os novos textos de Bergoglio, pois “o que se sonhava e aspirava
ontem, precisa existir amanhã, e esta saudade, não conseguiram abafá-la as
trevas da opressão, de modo que, por trás do deserto, aguarda Canaã ao
viajante, adornada em inédito esplendor” (Ernst Bloch).
Daniel M. Vilela