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Foto emblemática da vitalidade da esperança no primeiro governo Lula. |
Uma flexibilização da Teologia da Libertação significa um retorno a elementos da Doutrina Social da Igreja proposta por João XXIII e de Paulo VI (o catolicismo progressista), ou seja, a marginalização dos aspectos mais conflitantes da luta de classes.
Movimentos, leigos e sacerdotes defensores da Teologia da Libertação
formaram uma importante base para o Partido dos Trabalhadores nas décadas de
1980 e 1990. Com a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder na esfera
federal na figura de Luiz Inácio Lula da Silva, alguns dilemas se apresentaram
aos defensores da Teologia da Libertação e ligados ao PT: alguns saíram do PT
para formar o PSOL, como Plínio de Arruda Sampaio, em 2005. Tais dilemas
estariam baseados no conflito Projeto de Poder/Projeto Social. Frei Betto
afastou-se do governo Lula no final de 2004. Patrus Ananias, por outro lado,
manteve-se inserido no primeiro governo Lula.
Frei Betto foi Acessor Especial da presidência em 2003 e 2004 e foi um
dos coordenadores do programa Fome Zero. O Fome Zero tinha como objetivo o
investimento em políticas públicas voltadas para os mais pobres com ênfase na
emancipação econômica e no fim da miséria. No final da década de 1960, Frei
Betto integrava um grupo de dominicanos que acobertavam integrantes da Ação
Libertadora Nacional (ALN). Devido à sua relação com um grupo de oposição ao
Regime Militar, Frei Betto estivera preso entre 1969 e 1973. Após a Anistia em
1979, Frei Betto tornou-se um dos porta-vozes da Teologia da Libertação e
publicou diversos livros, entre eles: Batismo
de fogo e Fidel e a religião. Em
2006, Frei Betto publicou o livro A mosca
azul, em que aponta a deturpação do Partido dos Trabalhadores no poder e a
ambição e cobiça de integrantes do PT. Segundo Frei Betto, Lula trocou um bom
programa por um programa ruim, ou seja, o Fome Zero pela Bolsa Família. Para
Betto, isto ocorreu devido ao projeto de poder do PT, que cedeu parte do
controle do programa Fome Zero aos prefeitos, o que fez com que aumentasse a
corrupção e, posteriormente, fez com que o programa fosse desmantelado.
Patrus Ananias foi ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
desde 2004. Formou-se em Direito e foi um dos fundadores do Partido dos
Trabalhadores em Belo Horizonte, Minas Gerais. Foi prefeito de Belo Horizonte
entre 1993 e 1996. Em 2002 foi eleito deputado federal. Tem artigos publicados
em diversos jornais e revistas. Ananias manteve-se integrado ao PT mesmo após o
caso do Mensalão em 2005, quando petistas foram acusados de tráfico de
influência e de compra de votos de parlamentares. O Mensalão foi o estopim para
diversas dissidências de integrantes do PT, que passaram a compor o PSOL.
A existência de defensores da Teologia da Libertação integrados ao
primeiro governo Lula indica três questões: a relação entre religião e poder
temporal; entre intelectuais e política; entre marxismo e democracia.
Para a Teologia da Libertação não existe neutralidade, ou se está do lado
dos oprimidos ou dos opressores. Gutiérrez defende que o sacerdote católico
deve ser um intelectual orgânico dos grupos sociais da classe baixa. Patrus
Ananias é um intelectual orgânico de um partido político e se diz comprometido
com as bases populares. Daí a questão: como ele conciliou Teologia da
Libertação com as concessões e as alianças do PT com partidos ligados à
burguesia?
Elide Rugai Bastos e Walquíria Leão Rego apontam dois perigos que cercam
o pensamento crítico do intelectual: a apologia e a indiferença. Assim, teria
Patrus ficado cego por sua proximidade com o PT ou teria ele se comprometido
com um projeto de desenvolvimento social?
Por outro lado, a arena dos conflitos pela hegemonia de determinados
poderes simbólicos do Brasil entre 2003 e 2006 é distinto do cenário em que nasceu
a Teologia da Libertação.
Entre 2003 e 2006, no Brasil, a luta pelo poder simbólico é condicionada
em grande parte pelos jornais, internet e principalmente pela televisão. Neste
cenário marcado pelo poder simbólico midiatizado, intelectuais são medidos pela
popularidade na grande mídia. Nesse sentido, jornais e televisão controlam a
agenda do debate público e cria um público para estes debates.
A partir deste cenário midiatizado, o pensador italiano Salvatore Veca
defende que o intelectual não deve ser político, e se for, que não seja como um
intelectual. Por um lado, Veca quer livrar os intelectuais do poder da grande
mídia, por outro, defende o político profissional como modelo positivo de
atuação política. Nesse sentido, Patrus é primeiramente um político
profissional e Frei Betto é primeiramente um intelectual católico.
A partir de tipologias, Frei Betto seria um intelectual orgânico dos
grupos sociais pobres e explorados, um especialista no governo Lula em 2003 e
2004, um ideólogo do consenso e do dissenso fora do governo Lula, um
intelectual de vocação teórica e critica e não afeito à política profissional.
Com relação à Patrus Ananias, nossa hipótese é a de uma leitura flexível
da Teologia da Libertação. No entanto, uma flexibilização da Teologia da
Libertação significa um retorno a elementos da Doutrina Social da Igreja
proposta por João XXIII e de Paulo VI (o catolicismo progressista), ou seja, a
marginalização dos aspectos mais conflitantes da luta de classes. Ainda assim,
as tipologias da ciência política permitem apontar hipóteses: Patrus seria um
político profissional, cuja organicidade com as bases populares esgarçou-se e
cuja vocação teórica e crítica foi refreada. Por outro lado, seu papel como
ideólogo do consenso do governo petista é sobrepujada por seu papel de
especialista no governo Lula.
Acerca da famosa frase de Marx, a
religião é o ópio do povo, o sociólogo Michael Löwy, diz que esta frase não
cabe a Teologia da Libertação. Para Löwy, esta corrente do catolicismo é
revolucionária, anticapitalista radical e socialista.
No entanto, seria o governo Lula uma espécie de revolução passiva –
manutenção de estruturas capitalistas por um lado e transformações estruturais
em benefício das classes mais baixas por outro?
Para o sociólogo Mauro Iasi – membro do PCB, aliado do PSOL e do PSTU – a
crise do comunismo internacional e a reorganização do sistema produtivo nas
décadas de 1980 e 1990 impingiu barreiras à organização, mobilização e à
consciência de classe dos trabalhadores. Em contrapartida, segundo Iasi, o PT
distanciou-se dos trabalhadores e aliou-se a setores e partidos da ordem
capitalista. A social democracia seria uma ilusão e a social democracia
petista, devido ao cenário produtivo e internacional, seria ainda inferior à
social democracia européia. Ainda segundo Iasi, O PT tornou-se um partido
representativo – reflexo – de uma pequena-burguesia conformada
significativamente por burocratas de sindicatos, dos fundos de pensão e do
próprio partido.
Para Marcelo Badaró Mattos, um dos fundadores do PSOL, o PT marginalizou
o projeto socialista e enfocou as práticas eleitoreiras – alianças e concessões
com vistas a votos. Assim como Iasi, Mattos entende que o cenário internacional
enfraqueceu a organização e a mobilização da classe trabalhadora brasileira, um
dos motivos pelos quais o PT distanciou-se das bases populares em direção à
alianças com a burguesia e às concessões ao mercado.
Se o PT transformou-se em um partido organicamente ligado a uma
pequena-burguesia, o que explicaria a permanência de um defensor da Teologia da
Libertação no partido e no governo de Lula? Se insinuarmos que Patrus apropriou
se dos anseios populares em seus discursos com vistas a manutenção do PT no
poder, então entraremos no terreno do populismo.
No entanto o populismo se cristalizou
como um conjunto de características políticas e sociais de um determinado
período histórico da América Latina, um período marcado pela crise das
oligarquias agrárias, substituição de importação, industrialização regional,
emergência das massas, guerra fria, nacionalismo e, segundo Werfor e Iani,
manipulação dos trabalhadores e demagogia por parte de uma elite que ocupou o
poder – outros pensadores, como Alberto Aggio, entendem que este período foi
marcado pela revolução passiva, ou seja, conservação e transformação.
O contexto em que o PT ocupou o Estado entre 2003 e 2006 foi outro:
neoliberalismo, globalização e enfraquecimento da organização e mobilização dos
trabalhadores. O próprio PT não seria um partido da elite, mas um partido
reflexo de uma pequena burguesia. Iasi ainda argumenta que o PT é um partido
ligado a burocracia estatal. O próprio Patrus estava inserido nesta burocracia,
era um advogado trabalhista a serviço dos sindicatos. Por outro lado, Mattos
indica que o PT expandiu os horizontes “eleitoreiros” na direção dos
trabalhadores informais e dos mais miseráveis, principalmente por meio do
assistencialismo, o Bolsa Família.
Nesse sentido, o lulo-petismo seria distinto do
populismo, mas manteria a manipulação e a demagogia sobre os grupos
populares.
O fato de Patrus Ananias ter pertencido a burocracia sindical explicaria
sua permanência no PT ao contrário do sacerdote Frei Betto e de intelectuais
acadêmicos. Entretanto, o discurso de legitimação de Patrus acerca de sua
permanência no PT e no governo não seria sua ligação com a burocracia sindical,
mas baseada na Teologia da Libertação
e no catolicismo progressista de João XXIII e Paulo VI. Patrus não se silencia
frente às críticas ao programa social mais conhecido e polêmico do governo
Lula, o Bolsa Família. Patrus desenvolve um discurso legitimador do programa
apoiando-se em pensamentos esquerdistas ou esquerdizantes, principalmente em
correntes católicas que conformam o catolicismo progressista e a Teologia da
Libertação.
Neste cenário de política midiatizada e de desgaste da atuação pública do
intelectual, Bastos e Leão Rêgo apontam a existência de um grande fosso entre o
intelectual e o político profissional.
O
PSOL não deixa der ser uma tentativa de resolver este problema. O PSOL é um
partido formado significativamente por intelectuais acadêmicos guiados pela
teoria marxista e formado a partir de dissidentes do PT, um partido sem bases
teóricas fixas e claras e marcado pela política profissional a partir de meados
da década de 1990. Um dos dilemas do PSOL estaria em conciliar a teoria
marxista com a conquista de espaços simbólicos (dominada pela grande mídia de
natureza liberal) e sem fazer concessões e conchaves com o “inimigo”. Por um
lado, os intelectuais do PSOL ficam presos à teoria marxista, por outro, Patrus
Ananias prende-se à política profissional e descaracteriza a Teologia da
Libertação.
Para Domenico Losurdo, os intelectuais de esquerda foram
responsabilizados pelas atrocidades do comunismo soviético. Por outro lado,
segundo Losurdo, não há como o intelectual ser neutro politicamente e não há
como fugir das responsabilidades sociais. Para o pensador italiano, acreditar
no desenvolvimento espontâneo e natural das sociedades é uma ingenuidade e
também uma forma de legitimar o projeto social e intelectual do capitalismo.
A Teologia da Libertação perdeu muito de sua força social precisamente
após a Queda do Muro de Berlim. Assim como os marxistas, os defensores da
Teologia da Libertação foram responsabilizados pelo fracasso do comunismo soviético.
As estratégias do PT a partir de meados da década de 1990 não deixam de ser uma
forma de fugir destas acusações e uma forma de conquistas de espaços de poder
simbólico.
Norberto Bobbio desenvolveu dois tipos de atuação intelectual no mundo
político: o ideólogo (construtores do consenso ou do dissenso) e o experto
(especialista, “conselheiro do príncipe ou daquele que deseja ser príncipe”)
que correspondem respectivamente ao princípio-fim e o conhecimento-meio. Não
obstante, um mesmo intelectual pode atuar como ideólogo em um determinado
momento e atuar como experto em outro.
Frei Betto encaixa-se no tipo ideólogo, com exceção dos dois anos em que
foi assessor especial da presidência. Antes de 2003, Frei Betto foi um ideólogo
construtor do consenso esquerdista e do dissenso com relação à ditadura
militar, da sociedade capitalista e do neoliberalismo. Após 2004, ele continuou
a construir o consenso esquerdista e o dissenso com relação à sociedade
capitalista e o neoliberalismo, mas também construindo o dissenso com relação
ao governo petista – não obstante seus pequenos espaços de exercício do poder
simbólico. Em 2003 e 2004 ele atuou como um especialista em desenvolvimento
econômico e políticas de igualdade social para quem cabe as decisões, o
presidente e ministros. Os dilemas de Frei Betto estaria em conciliar seu papel
de especialista no governo e sua vocação de intelectual teórico e crítico.
Também neste sentido, Patrus Ananias insere-se
no primeiro governo Lula como um especialista em desenvolvimento social e
políticas de igualdade social, conciliando ao papel de especialista sua atuação
como político profissional. Sua atuação como construtor do consenso petista foi
secundaria, em parte também devido aos poucos espaços de exercício de poder
simbólico na grande mídia.
AGGIO, Alberto. A emergência de massas na política
latino-americana e a teoria do populismo. In AGGIO, Alberto & LAHUERTA,
Milton (org.). Pensar o século XX.
Problemas políticos e história nacional na América Latina. São Paulo:
Editora UNESP, 2003.
BOBBIO, Norberto. Os
intelectuais e o poder. São Paulo: Editora UNESP, 1997.