domingo, 15 de dezembro de 2013

A esperança ernst-blochiana e a esperança bergoglio-franciscana


A esperança ernst-blochiana e a esperança bergoglio-franciscana


           Sobre a polêmica suscitada pela primeira exortação apostólica do Papa Francisco, ouso dizer que houve sim o impacto do pensamento marxista, e vejo isso de forma positiva. Por outro lado, foi um impacto indireto e de uma determinada corrente marxista, mais especialmente do marxismo de Ernst Bloch. Para compreender melhor, reproduzo abaixo alguns trechos de outro texto meu (Utopias esquecidas).

“... o que Münster quer sugerir também é que há pontos de contatos entre expressionismo, messianismo e marxismo. A sinergia entre três elementos é uma das marcas principais do materialismo de Bloch. A emotividade, a revolta, os desejos, as esperanças e utopias encontram um terreno mais sóbrio dentro do marxismo para se desenvolverem”.

“Para Bloch, há na Bíblia um potencial subversivo. Uma leitura profunda e crítica do texto bíblico confirmariam que a história do mundo e a história da salvação formam uma única história e o que o reino prometido não é apenas espiritual, mas também terreno. O Êxodo pode ser compreendido não como uma fuga geográfica, mas como modelo de superação de um estado de injustiça – nesse sentido, há uma grande consonância entre a Bíblia e movimentos populares contra a ordem.”

O entendimento do potencial revolucionário existente na Bíblia e do caráter eminentemente político do evangelho – calcados na esperança – foi bem acolhido pelos teólogos Jürgen Moltmann, Johann Baptist Metz, Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff”.

Abaixo, alguns trechos da primeira exortação apostólica de Francisco:

Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo”.

“A verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre história”.

“Acreditamos no Evangelho que diz que o Reino de Deus já está presente no mundo, e vai-se desenvolvendo aqui e além de várias maneiras.”

“Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai.”

A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais”.

“É perigoso viver no reino só da palavra, da imagem, do sofisma. Por isso, há que postular um terceiro princípio: a realidade é superior à ideia. Isto supõe evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projectos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria.”

Este último trecho me fez lembrar de uma descrição sobre Ernst Bloch feita pela filosofa Suzana Albornoz:

“Bloch é um construtor de catedrais que pode pertencer melhor à maçonaria dos utopistas do que ao concilio dos pontífices das igrejas filosóficas da modernidade – cuja fé é o relativismo, cujo deus é o nada, cuja moral é a critica ao conhecimento, cuja práxis é a analise da linguagem”.

Outros trechos do texto de Francisco me fizeram lembrar de Metz (da questão da lembrança e da missão); de Moltmann (da questão da esperança); de Paulo Freire (do possível viável e as situações limites); de Pannenberg (da questão da história) e de Bloch (das questões da utopia, esperança e do Reino de Deus no mundo).

Veja a diferença com relação à Bento XVI, que usa o termo utopia com valor negativo:

“... é necessária a Palavra que comunique aquilo que o próprio Senhor nos disse; por outro, é indispensável dar, com o testemunho, credibilidade a esta Palavra, para que não apareça como uma bela filosofia ou utopia, mas antes como uma realidade que se pode viver e que faz viver.” (Verbum Domini).

“Amadurecida durante toda a história da Igreja, esta doutrina (Social da Igreja) caracteriza-se pelo seu realismo e equilíbrio, ajudando assim a evitar promessas enganadoras ou vãs utopias.” (Sacramentum caritatis).

“A humanidade inteira aliena-se quando se entrega a projectos unicamente humanos, a ideologias e a falsas utopias.” (Caritas in veritate).

Abaixo, Bento XVI refuta tanto o Reino como existente no além quanto como existente em um futuro terreno. Para ele, o verdadeiro Reino é possível de se alcançar no íntimo de cada um. Portanto, o caminho para o Reino e o próprio Reino é individual e não coletivo. Ao homem não cabe a construção do Reino terreno - apenas devemos rezar e esperar.

“O seu reino não é um além imaginário, colocado num futuro que nunca mais chega; o seu reino está presente onde Ele é amado e onde o seu amor nos alcança.” (Spe Salvi).

“Certamente, não podemos « construir » o reino de Deus com as nossas forças; o que construímos permanece sempre reino do homem com todos os limites próprios da natureza humana.” (Spe Salvi).

Percebe-se então que a saída de Bento XVI e a entrada de Francisco no Vaticano foi uma guinada à esquerda. Espero ansiosamente os novos textos de Bergoglio, pois “o que se sonhava e aspirava ontem, precisa existir amanhã, e esta saudade, não conseguiram abafá-la as trevas da opressão, de modo que, por trás do deserto, aguarda Canaã ao viajante, adornada em inédito esplendor” (Ernst Bloch).


Daniel M. Vilela

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Morus e Campanella: Utopia e Cidade do Sol.


No século XVI, Thomas Morus publicou seu projeto utópico, porém descolado da esperança cristã no reino de mil anos. No livro Utopia, o marinheiro Rafael relata a sociedade igualitária, livre e prazerosa que conheceu em uma de suas viagens. Por um lado, não há o milenarismo ou o quiliasmo, por outro, há a indicação de um mundo melhor e possível de ser construída por mãos humanas.

Campanella, no início do século XVII, desenvolveu sua utopia – a Cidade do Sol –, baseada na ordem e na astrologia. Não há propriedade privada e trabalha se quatro horas por dia, mas tudo é regido pelos astros. O bem estar de todos depende de orientar-se corretamente pelos movimentos dos corpos celestes.

Ambos, Morus e Campanella, afastaram-se do quiliasmo e aproximaram-se da sociedade racional idealizada por Platão. No entanto, enquanto Thomaz Morus baseou-se em relatos do comunismo primitivo ameríndio, Campanella parece ter baseado sua utopia no Império Asteca. Para o historiador Lewis Munford, a Cidade do Sol uniu a República de Platão com o Império de Montezuma.

              O desejo por igualdade na Utopia de Morus alimentou-se também do pensamento burguês, ainda incipiente e que buscava a diminuição das desigualdades entre nobres e plebeus. O desejo por ordem social de Campanella, por sua vez, alimentou-se do processo de centralização absolutista e com o avanço da manufatura, organizada de forma ampla e unificadora.

Trecho retirado do livro Utopias Esquecidas.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Angélico Sândalo Bernardino e o clero católico progressista de Ribeirão Preto.

Angélico Sândalo Bernardino no programa Roda Viva da TV Cultura.
A conduta esquerdista não radical, moderada, de Angélico Bernardino - atualmente bispo emérito de Blumenau -, conciliou-se bem com o governo de João Goulart e concilia-se bem o governo petista. Meu trabalho de conclusão de curso, finalizado em 2004, debruçou-se sobre o clero católico progressista da região de Ribeirão Preto, SP. Acerca de Bernardino e de seu grupo eu havia escrito o que segue:

Em 1952, Dom Luis se tornou bispo de Ribeirão Preto, SP. Dessa vez, Dom Luis Mousinho entrou em contato com uma região mais rica materialmente, mas também com péssimas condições de trabalho e pobreza no campo. Ele pregava a atualização do clero e a reflexão sobre os problemas socioeconômicos. Sob sua administração, e orientado por ele, surgiu um grupo de sacerdotes progressistas em Ribeirão Preto, no qual se destacaram: padre Celso Ibson de Sylos, padre Angélico Sândalo Bernardino[1], Dom David Picão, frei Antonio Rolim, além de seminaristas como Francisco de Assis Correia. Esse grupo se baseava na Doutrina Social da Igreja, reestruturada pelo Papa João XXIII, e nas novas correntes progressistas católicas da Europa, principalmente nas idéias de padre Lebret.

...

Padre Celso Ibson de Sylos foi convidado por Dom Mousinho a fazer um curso em Roma sobre problemas sociais. Permaneceu na Europa de agosto de 1960 a dezembro de 1961. No seu lugar, como diretor do jornal Diário de Notícias, ficou o padre Angélico Bernardino, que comentou por meio do jornal os principais acontecimentos da época, como por exemplo: vitória e renúncia de Jânio Quadros; e os impasses relativos à posse de João Goulart. Como padre progressista - democrata, antiliberal e contrario ao autoritarismo -, Bernardino defendeu a legalidade contra um possível golpe militar que impediria a posse de João Goulart; demonstrou um certo receio consoante com as vozes conservadoras com a figura do novo presidente; e um medo em relação a uma possível guerra civil:

...opinam que Goulart, com razão ou não, devia renunciar no cargo de vice-presidente. Deste modo, seria apaziguada a família brasileira. Não teríamos revolução, nem mortes de jovens mais futurosos. O Brasil poderá caminhar sem ódios e sem mortes. Um gesto patriótico de Goulart diante da tragédia que poderá ter conseqüências imprevisíveis, reconduziria o Brasil à paz.[1]

...Defendemos, com todas as forças da legalidade do amor a Constituição mesmo que isto nos traga como conseqüência, o Presidente João Goulart. Não importa o fruto. A nós a honra de nos batermos pela justiça...[2]

 ...Acreditamos até que, coadjuvado por um bom Conselho de Ministros, êsse homem medíocre sobre o qual se fazem os comentários mais comprometedores, possa realizar um Governo. É o que pedimos a Deus.[3]

Padre Celso retornou no início de 1962 e voltou a ser o diretor do Diário de Notícias. Teve uma postura mais progressista que Angélico Bernardino. Nesse ano, criticou todos aqueles que se opunham à “marcha da socialização do capital”. Contra uma manifestação da Associação Comercial do Rio de Janeiro pedindo às “classes produtoras” pequenos sacrifícios para ajudar a controlar a inflação, padre Celso respondeu:
Nós entendemos que a hora não é para pequenos sacrifícios, não. O momento é para se partir para em definitivo ao encontro das soluções apontadas claramente pela Doutrina Social Cristã. Não se pode mais omitir na marcha da socialização tranqüila, progressiva e firme dos capitais. Urge a democratização do capital. Urge a implantação da primazia do trabalho sobre o capital.
Não nos parece que essa solução cristã custa apenas “pequenos sacrifícios” às classes denominadas produtoras.[4]

...

A manchete do 31 de março era: “Minas se Levantou para um Golpe” e o editorial escrito por padre Celso atacava esse levante. Nesse dia, padre Celso, após a ousadia de elaborar um editorial tão subversivo para aqueles dias, escondeu-se na casa de Antonio Duarte Nogueira. No dia seguinte, fugiu para o Rio de Janeiro, escondendo-se sob a sombra de D. Helder Câmara.

O Golpe Militar de 1964, logo em seguida, afastou o tom esquerdista radical do jornal. Nos dias seguintes, o Diário de Notícias esteve em consonância com a política dos militares, a primeira página do jornal do dia 9 de maio trazia uma exaltação ao golpe e à  “Marcha da Família com Deus, pela Liberdade” ocorrida em Ribeirão Preto:

A tarde de quarta feira colheu a população leal  a uma grande demonstração de civismo dando expansão ao vitorioso movimento das forças armadas garantidor da democracia brasileira. A Marcha da Família com Deus, pela Liberdade reuniu multidão calculada entre quarenta a cinqüenta mil pessoas, representadas por homens, mulheres e crianças de todas os escalões sociais e profissionais. O desfile, iniciado em diversos pontos da cidade atingiu o seu ponto culminante com a concentração da grande massa humana na Esplanada da Praça XV de Novembro, onde um comício com diversos oradores traduziu a manifestação de Ribeirão Preto na sua fidelidade ao mesmo e na sua confiança no governo agora empenhado em levar a tranqüilidade a todos os pontos do Brasil. Dessa, memorável jornada patriótica é este expressivo flagrante, testemunha da presença de Ribeirão preto à Marcha da Família com Deus, pela Liberdade.[1]

No dia 12 de maio, o Diário de Notícias transmitia o julgamento de Papa Paulo VI em relação ao Golpe ocorrido no Brasil. Apesar de pedir soluções para as desigualdades sociais do Brasil, houve por parte do Papa Paulo VI, um apoio aos militares:

Os dirigentes do Brasil devem satisfazer às legitimas exigências das classes trabalhadoras e empreender necessárias reformas, se desejam que a Nação evite o perigo e a triste experiência do Comunismo. Estou satisfeito por não ter o Brasil derramado sangue na revolução. Agora, chegou a hora da ação. Os problemas do Brasil são gigantescos, e para eles deve-se procurar solução com toda a urgência.[2] 

Padre Celso ficou um mês em Petrópolis até que recebeu uma intimação por meio de uma carta de D. Agnelo para que voltasse a Ribeirão Preto. Quando voltou, D. Agnelo comunicou-o de que as autoridades decidiram que ele ficaria preso no palácio episcopal ou no mosteiro. Padre Celso recusou-se e ficou preso um mês no quartel. Frente às indagações da sociedade, alguns jornais de Ribeirão Preto publicaram uma declaração sobre a prisão do padre feita pelo “triunvirato” – aqueles que administraram a cidade após o golpe: o chefe regional de polícia, o comandante da Policia Militar e o Coronel do Exercito da Cidade. Os argumentos eram: organização da greve da indústria Matarazzo e invasão de fazendas.[3]

Celso Ibson de Sylos disse ter recebido a visita de D. Agnelo na prisão. Segundo Celso, D. Agnelo estava apavorado e angustiado, pois a prisão de padre Celso havia dividido as “ovelhas”. Padre Celso, então, prometeu a ele, sair de Ribeirão Preto quando solto.[4] De fato, em 1981, na Catedral de Ribeirão Preto, D. Agnelo, em uma homilia, disse que o período em que foi arcebispo dessa cidade foi o período mais sofrível de sua vida.

 Se em alguma parte devo excusar-me é precisamente em Ribeirão Preto onde, permiti-me (sic) o desabafo, também mais sofri em minha vida, apesar da sinceridade e disposição de executar meu lema episcopal: “Opportet Illum regnare”= “É necessário que Cristo reine”.[5]

Solto, padre Celso foi para o Rio de Janeiro, regressando para Ribeirão Preto quando D. Agnelo se tornou arcebispo de São Paulo em 1965. No entanto, o então arcebispo de Ribeirão Preto, D. Frei Felício César da Cunha Vasconcelos, pediu para que padre Celso não fizesse militância política. Celso, então, tentou buscar um espaço para fazer sua política nas arquidioceses do Salvador e Goiânia, mas houve receio dos arcebispos. Nesse contexto, Celso Ibson de Sylos pediu seu desligamento do Clero e se tornou vereador de Ribeirão Preto em 1967 pelo MDB.

Quanto a D. Agnelo, ele se tornou arcebispo de São Paulo em 1965. Em 1969 ele se tornou cardeal em Roma. O padre Angélico Sândalo Bernardino continuou em Ribeirão Preto e fez militância política por meio do Diário de Notícias após a saída de D. Agnelo de Ribeirão Preto. A organização dos trabalhadores rurais na região também continuou, não obstante a opressão e a observação do governo militar. Celso Ibson de Sylos continuou a ajudá-los no final da década de 60 e durante a década de 70 atuando como assessor.



[1] Marcha da Família com Deus, pela Liberdade. Diário de Notícias. 09 maio 1964. p. 1. 
[2] O Papa nos Falou. Diário de Notícias. coluna Nosso Comentário. 12 maio 1964. p. 2.
[3] Depoimento de Padre Celso Ibson de Sylos no dia 04.08.1990 ao Projeto “História do Movimento Operário e Sindical”, desenvolvido pelo Museu Histórico e Pedagógico de Batatais “Washington Luís”. Fita VHS.
[4] Ibidem.
[5] ROSSI, D. Agnelo. Apud CORREIA, Padre Francisco de Assis de. História da Arquidiocese de Ribeirão Preto. Franca: Editora Santa Rita, 1983. p. 70 – 71. 

...

Contra o Clero Progressista, o conservador Dom Agnelo Rossi tentou obstruir o trabalho de conscientização política feita pelo jornal Diário de Notícias, reestruturando esse jornal. E após o Golpe, os militares prenderam padre Celso por seu envolvimento com os trabalhadores, tanto rural quanto urbano. 

No entanto, o engajamento político católico esquerdizante junto às camadas populares continuou em Ribeirão Preto nos primeiros anos do regime militar, não obstante a opressão e a observação dos militares. Angélico Sândalo Bernardino, à frente do Diário de Notícias, chamava a atenção para os problemas sociais e econômicos; e Celso Ibson de Sylos, desligado do Clero Católico, tornou-se vereador em Ribeirão Preto e assessor junto aos trabalhadores rurais organizados.

Padre Celso, assim como a JUC, situou-se no oposto da esquerda católica transigente com a alta hierarquia da Igreja, de maioria conservadora. Dessa forma, padre Celso atuou de forma radical, próximo à “atuação-limite” do padre colombiano Camillo Torres, que pediu redução ao estado leigo, se juntou aos guerrilheiros, se tornou procurado pela policia e foi morto em 1966.[1]



[1] MENDES, Candido. Memento dos Vivos. A Esquerda Católica no Brasil. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966. p. 22.


[1] BERNARDINO, Padre Angélico Sândalo. Opiniões. Diário de Notícias. coluna Nosso Comentário, 30 agos. 1961. p. 2.
[2] BERNARDINO, Padre Angélico Sândalo. O Povo quer Legalidade. Diário de Notícias. coluna Nosso Comentário, 02 set. 1961. p. 2.
[3] BERNARDINO, Padre Angélico Sândalo. Pausa para Pensar. Diário de Notícias. coluna Nosso Comentário, 05 set. 1961. p. 2.
[4] SYLOS, Padre Celso Ibson de. A Solução é a Socialização. Diário de Noticias. Coluna Nosso Comentário. 05 out. 1962. p. 2.



[1] Atualmente, Angélico Sândalo Bernardino é Bispo de Blumenau.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Teologia da libertação e o primeiro governo Lula. Apontamentos prévios e críticas.

Foto emblemática da vitalidade da esperança no primeiro governo Lula.

Uma flexibilização da Teologia da Libertação significa um retorno a elementos da Doutrina Social da Igreja proposta por João XXIII e de Paulo VI (o catolicismo progressista), ou seja, a marginalização dos aspectos mais conflitantes da luta de classes.

Movimentos, leigos e sacerdotes defensores da Teologia da Libertação formaram uma importante base para o Partido dos Trabalhadores nas décadas de 1980 e 1990. Com a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder na esfera federal na figura de Luiz Inácio Lula da Silva, alguns dilemas se apresentaram aos defensores da Teologia da Libertação e ligados ao PT: alguns saíram do PT para formar o PSOL, como Plínio de Arruda Sampaio, em 2005. Tais dilemas estariam baseados no conflito Projeto de Poder/Projeto Social. Frei Betto afastou-se do governo Lula no final de 2004. Patrus Ananias, por outro lado, manteve-se inserido no primeiro governo Lula.

Frei Betto foi Acessor Especial da presidência em 2003 e 2004 e foi um dos coordenadores do programa Fome Zero. O Fome Zero tinha como objetivo o investimento em políticas públicas voltadas para os mais pobres com ênfase na emancipação econômica e no fim da miséria. No final da década de 1960, Frei Betto integrava um grupo de dominicanos que acobertavam integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN). Devido à sua relação com um grupo de oposição ao Regime Militar, Frei Betto estivera preso entre 1969 e 1973. Após a Anistia em 1979, Frei Betto tornou-se um dos porta-vozes da Teologia da Libertação e publicou diversos livros, entre eles: Batismo de fogo e Fidel e a religião. Em 2006, Frei Betto publicou o livro A mosca azul, em que aponta a deturpação do Partido dos Trabalhadores no poder e a ambição e cobiça de integrantes do PT. Segundo Frei Betto, Lula trocou um bom programa por um programa ruim, ou seja, o Fome Zero pela Bolsa Família. Para Betto, isto ocorreu devido ao projeto de poder do PT, que cedeu parte do controle do programa Fome Zero aos prefeitos, o que fez com que aumentasse a corrupção e, posteriormente, fez com que o programa fosse desmantelado.[1]
 
Patrus Ananias foi ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome desde 2004. Formou-se em Direito e foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores em Belo Horizonte, Minas Gerais. Foi prefeito de Belo Horizonte entre 1993 e 1996. Em 2002 foi eleito deputado federal. Tem artigos publicados em diversos jornais e revistas. Ananias manteve-se integrado ao PT mesmo após o caso do Mensalão em 2005, quando petistas foram acusados de tráfico de influência e de compra de votos de parlamentares. O Mensalão foi o estopim para diversas dissidências de integrantes do PT, que passaram a compor o PSOL.

A existência de defensores da Teologia da Libertação integrados ao primeiro governo Lula indica três questões: a relação entre religião e poder temporal; entre intelectuais e política; entre marxismo e democracia.

Para a Teologia da Libertação não existe neutralidade, ou se está do lado dos oprimidos ou dos opressores. Gutiérrez defende que o sacerdote católico deve ser um intelectual orgânico dos grupos sociais da classe baixa. Patrus Ananias é um intelectual orgânico de um partido político e se diz comprometido com as bases populares. Daí a questão: como ele conciliou Teologia da Libertação com as concessões e as alianças do PT com partidos ligados à burguesia?

Elide Rugai Bastos e Walquíria Leão Rego apontam dois perigos que cercam o pensamento crítico do intelectual: a apologia e a indiferença. Assim, teria Patrus ficado cego por sua proximidade com o PT ou teria ele se comprometido com um projeto de desenvolvimento social?

Por outro lado, a arena dos conflitos pela hegemonia de determinados poderes simbólicos do Brasil entre 2003 e 2006 é distinto do cenário em que nasceu a Teologia da Libertação.

Entre 2003 e 2006, no Brasil, a luta pelo poder simbólico é condicionada em grande parte pelos jornais, internet e principalmente pela televisão. Neste cenário marcado pelo poder simbólico midiatizado, intelectuais são medidos pela popularidade na grande mídia. Nesse sentido, jornais e televisão controlam a agenda do debate público e cria um público para estes debates.

A partir deste cenário midiatizado, o pensador italiano Salvatore Veca defende que o intelectual não deve ser político, e se for, que não seja como um intelectual. Por um lado, Veca quer livrar os intelectuais do poder da grande mídia, por outro, defende o político profissional como modelo positivo de atuação política. Nesse sentido, Patrus é primeiramente um político profissional e Frei Betto é primeiramente um intelectual católico.

A partir de tipologias, Frei Betto seria um intelectual orgânico dos grupos sociais pobres e explorados, um especialista no governo Lula em 2003 e 2004, um ideólogo do consenso e do dissenso fora do governo Lula, um intelectual de vocação teórica e critica e não afeito à política profissional.
 
Com relação à Patrus Ananias, nossa hipótese é a de uma leitura flexível da Teologia da Libertação. No entanto, uma flexibilização da Teologia da Libertação significa um retorno a elementos da Doutrina Social da Igreja proposta por João XXIII e de Paulo VI (o catolicismo progressista), ou seja, a marginalização dos aspectos mais conflitantes da luta de classes. Ainda assim, as tipologias da ciência política permitem apontar hipóteses: Patrus seria um político profissional, cuja organicidade com as bases populares esgarçou-se e cuja vocação teórica e crítica foi refreada. Por outro lado, seu papel como ideólogo do consenso do governo petista é sobrepujada por seu papel de especialista no governo Lula.

 Acerca da famosa frase de Marx, a religião é o ópio do povo, o sociólogo Michael Löwy, diz que esta frase não cabe a Teologia da Libertação. Para Löwy, esta corrente do catolicismo é revolucionária, anticapitalista radical e socialista.[1]

No entanto, seria o governo Lula uma espécie de revolução passiva – manutenção de estruturas capitalistas por um lado e transformações estruturais em benefício das classes mais baixas por outro?

Para o sociólogo Mauro Iasi – membro do PCB, aliado do PSOL e do PSTU – a crise do comunismo internacional e a reorganização do sistema produtivo nas décadas de 1980 e 1990 impingiu barreiras à organização, mobilização e à consciência de classe dos trabalhadores. Em contrapartida, segundo Iasi, o PT distanciou-se dos trabalhadores e aliou-se a setores e partidos da ordem capitalista. A social democracia seria uma ilusão e a social democracia petista, devido ao cenário produtivo e internacional, seria ainda inferior à social democracia européia. Ainda segundo Iasi, O PT tornou-se um partido representativo – reflexo – de uma pequena-burguesia conformada significativamente por burocratas de sindicatos, dos fundos de pensão e do próprio partido.[2]

Para Marcelo Badaró Mattos, um dos fundadores do PSOL, o PT marginalizou o projeto socialista e enfocou as práticas eleitoreiras – alianças e concessões com vistas a votos. Assim como Iasi, Mattos entende que o cenário internacional enfraqueceu a organização e a mobilização da classe trabalhadora brasileira, um dos motivos pelos quais o PT distanciou-se das bases populares em direção à alianças com a burguesia e às concessões ao mercado.[3]

Se o PT transformou-se em um partido organicamente ligado a uma pequena-burguesia, o que explicaria a permanência de um defensor da Teologia da Libertação no partido e no governo de Lula? Se insinuarmos que Patrus apropriou se dos anseios populares em seus discursos com vistas a manutenção do PT no poder, então entraremos no terreno do populismo. No entanto o populismo se cristalizou como um conjunto de características políticas e sociais de um determinado período histórico da América Latina, um período marcado pela crise das oligarquias agrárias, substituição de importação, industrialização regional, emergência das massas, guerra fria, nacionalismo e, segundo Werfor e Iani, manipulação dos trabalhadores e demagogia por parte de uma elite que ocupou o poder – outros pensadores, como Alberto Aggio, entendem que este período foi marcado pela revolução passiva, ou seja, conservação e transformação.[4]

O contexto em que o PT ocupou o Estado entre 2003 e 2006 foi outro: neoliberalismo, globalização e enfraquecimento da organização e mobilização dos trabalhadores. O próprio PT não seria um partido da elite, mas um partido reflexo de uma pequena burguesia. Iasi ainda argumenta que o PT é um partido ligado a burocracia estatal. O próprio Patrus estava inserido nesta burocracia, era um advogado trabalhista a serviço dos sindicatos. Por outro lado, Mattos indica que o PT expandiu os horizontes “eleitoreiros” na direção dos trabalhadores informais e dos mais miseráveis, principalmente por meio do assistencialismo, o Bolsa Família.[5] Nesse sentido, o lulo-petismo seria distinto do populismo, mas manteria a manipulação e a demagogia sobre os grupos populares.

O fato de Patrus Ananias ter pertencido a burocracia sindical explicaria sua permanência no PT ao contrário do sacerdote Frei Betto e de intelectuais acadêmicos. Entretanto, o discurso de legitimação de Patrus acerca de sua permanência no PT e no governo não seria sua ligação com a burocracia sindical, mas baseada na Teologia da Libertação e no catolicismo progressista de João XXIII e Paulo VI. Patrus não se silencia frente às críticas ao programa social mais conhecido e polêmico do governo Lula, o Bolsa Família. Patrus desenvolve um discurso legitimador do programa apoiando-se em pensamentos esquerdistas ou esquerdizantes, principalmente em correntes católicas que conformam o catolicismo progressista e a Teologia da Libertação.

Neste cenário de política midiatizada e de desgaste da atuação pública do intelectual, Bastos e Leão Rêgo apontam a existência de um grande fosso entre o intelectual e o político profissional.[6] O PSOL não deixa der ser uma tentativa de resolver este problema. O PSOL é um partido formado significativamente por intelectuais acadêmicos guiados pela teoria marxista e formado a partir de dissidentes do PT, um partido sem bases teóricas fixas e claras e marcado pela política profissional a partir de meados da década de 1990. Um dos dilemas do PSOL estaria em conciliar a teoria marxista com a conquista de espaços simbólicos (dominada pela grande mídia de natureza liberal) e sem fazer concessões e conchaves com o “inimigo”. Por um lado, os intelectuais do PSOL ficam presos à teoria marxista, por outro, Patrus Ananias prende-se à política profissional e descaracteriza a Teologia da Libertação.

Para Domenico Losurdo, os intelectuais de esquerda foram responsabilizados pelas atrocidades do comunismo soviético. Por outro lado, segundo Losurdo, não há como o intelectual ser neutro politicamente e não há como fugir das responsabilidades sociais. Para o pensador italiano, acreditar no desenvolvimento espontâneo e natural das sociedades é uma ingenuidade e também uma forma de legitimar o projeto social e intelectual do capitalismo.[7]

A Teologia da Libertação perdeu muito de sua força social precisamente após a Queda do Muro de Berlim. Assim como os marxistas, os defensores da Teologia da Libertação foram responsabilizados pelo fracasso do comunismo soviético. As estratégias do PT a partir de meados da década de 1990 não deixam de ser uma forma de fugir destas acusações e uma forma de conquistas de espaços de poder simbólico.

Norberto Bobbio desenvolveu dois tipos de atuação intelectual no mundo político: o ideólogo (construtores do consenso ou do dissenso) e o experto (especialista, “conselheiro do príncipe ou daquele que deseja ser príncipe”) que correspondem respectivamente ao princípio-fim e o conhecimento-meio. Não obstante, um mesmo intelectual pode atuar como ideólogo em um determinado momento e atuar como experto em outro.[8]

Frei Betto encaixa-se no tipo ideólogo, com exceção dos dois anos em que foi assessor especial da presidência. Antes de 2003, Frei Betto foi um ideólogo construtor do consenso esquerdista e do dissenso com relação à ditadura militar, da sociedade capitalista e do neoliberalismo. Após 2004, ele continuou a construir o consenso esquerdista e o dissenso com relação à sociedade capitalista e o neoliberalismo, mas também construindo o dissenso com relação ao governo petista – não obstante seus pequenos espaços de exercício do poder simbólico. Em 2003 e 2004 ele atuou como um especialista em desenvolvimento econômico e políticas de igualdade social para quem cabe as decisões, o presidente e ministros. Os dilemas de Frei Betto estaria em conciliar seu papel de especialista no governo e sua vocação de intelectual teórico e crítico.

Também neste sentido, Patrus Ananias insere-se no primeiro governo Lula como um especialista em desenvolvimento social e políticas de igualdade social, conciliando ao papel de especialista sua atuação como político profissional. Sua atuação como construtor do consenso petista foi secundaria, em parte também devido aos poucos espaços de exercício de poder simbólico na grande mídia.



[1] LÖWY, Michael. Marxismo e Teologia da Libertação. São Paulo: Cortez Editora, 1991.
[2] IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da consciência de classe. O PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
[3] MATTOS, Marcelo Badaró. Reorganizando em meio ao refluxo. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2009.
[4] AGGIO, Alberto. A emergência de massas na política latino-americana e a teoria do populismo. In AGGIO, Alberto & LAHUERTA, Milton (org.). Pensar o século XX. Problemas políticos e história nacional na América Latina. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
[5] MATTOS, Marcelo Badaró. Reorganizando em meio ao refluxo. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2009.
[6] BASTOS, Elide Rugai & RÊGO, Walquíria Leão. (org.). Intelectuais e política. A moralidade do compromisso. São Paulo: Editora Olha d’Água, 1999.
[7] LOSURDO, Domenico. Os intelectuais e o conflito: responsabilidade e consciência histórica. In BASTOS, Elide Rugai & RÊGO, Walquíria Leão. (org.). Intelectuais e política. A moralidade do compromisso. São Paulo: Editora Olha d’Água, 1999.
[8] BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: Editora UNESP, 1997.


[1] BETTO, Frei. A mosca azul. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2006.

domingo, 14 de julho de 2013

Algumas utopias segundo Ernst Bloch

Projeto Nova Harmonia de Robert Owen

Algumas utopias segundo Ernst Bloch

No século XIX, surgiram novas e fortes utopias sociais – pois os ideais da revolução burguesa tornaram-se demasiadamente abstratas. Já em 1800, Fichte uniu o direito natural ao desejo de ordem do tipo Campanella no texto O Estado comercial fechado. Segundo Fichte, uma economia baseada na livre competição de interesses individuais (conforme defendido por Adam Smith) traz como consequência o desemprego, desigualdades sociais e crises econômicas.

A industrialização na Inglaterra, no início do século XIX, criou uma grande camada social de proletários em condições de extrema pobreza e de trabalhos degradantes. Robert Owen indicou a necessidade de reformas na produção capitalista com vistas à diminuição da exploração sobre o proletário. Indicou também que um trabalhador bem nutrido e mais satisfeito produziria o dobro de trabalho e algo melhor do que um “escravo de galé”. No entanto, Owen buscava primeiramente uma sociedade mais humana ao invés do aperfeiçoamento da produção capitalista. Posteriormente, desenvolveu sua utopia: aldeias baseadas na agricultura e no artesanato, onde haveria harmonia e liberdade e não haveria propriedade privada. Também a partir da Inglaterra, Fourier, antes de Marx, afirmou que a pobreza é correlata à opulência capitalista. A utopia de Charles Fourier consistia em comunidades harmônicas baseadas no amor cristão ao semelhante – apesar de ter sido um grande crítico da “civilização” cristã burguesa.

Owen e Fourier desenvolveram utopias bucólicas, de liberdade e federativas. Os franceses Étienne Cabet e Saint-Simon desenvolveram utopias industriais, rigorosamente ordenadas e centralistas. Na Icária de Cabet, também se trabalha menos e tudo é redigo pela técnica e pela ciência, com vistas a uma economia planificada. Na utopia de Saint-Simon os juízes e os governantes são os engenheiros, os tecnocratas e os cientistas.

Entre as utopias pré-marxistas, também se encontrava o anarquismo. Contra a coação estatal e as leis, Stirner defendia o hiper-individualismo e Prodhoun desejava uma sociedade de pequenos proprietários totalmente autônomos cujas relações econômicas seriam baseadas em contratos. Para Bakunin, o Estado é o causador de todos os males.

Por sua vez, o proletário Weitling não acreditava mais em medidas socialistas “com ajuda” da classe dominante. Seu mundo utópico era bastante ordenado e construído e mantido a partir do amor fraternal e cristão.

As utopias sociais pré-marxistas de Owen, Fourier, Cabet, Saint-Simon e de Weitling descrevem o mundo utópico de forma bastante ilustrativa, mas os meios de realizar estas utopias foram descritas de forma precária – em contraste com Marx, que detalhou os meios de superar o capitalismo e pouco revelou sobre a sociedade sem classes. Por outro lado, os anarquistas buscavam a utopia de forma imediata e irracional.

Texto retirado do livro Utopias esquecidas

Utopias esquecidas na Livraria Erdos

http://www.erdos.com.br/produto/0/23311/utopias-esquecidas

domingo, 7 de julho de 2013

Notas do livro em jornais sorocabanos.



http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia/484153/teologia-da-libertacao-e-tema-de-livro-de-sorocabano

http://www.diariodesorocaba.com.br/site2010/materia2.php?id=224903

Arcebispo de Sorocaba alude para os "perigos" do marxismo na teologia.

O Marxismo na teologia

Alguns assumiram o método de análise marxista que privilegia o conflito - a luta de classes - como ponto de partida de compreensão do processo histórico
 
Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues

No século passado o pensamento marxista de tal forma parecia a verdadeira interpretação da história que muitos pensadores cristãos, excluindo o ateísmo explícito do marxismo, julgaram dever adotar seu método de análise da sociedade com sua consequente práxis, como instrumento indispensável para a eficácia da participação dos cristãos no processo sociopolítico para a transformação das estruturas de injustiça. Na Europa pensadores cristãos dialogavam com pensadores marxistas e, por sua vez, pensadores marxistas reviam a posição radical do marxismo ortodoxo em relação à religião. 

Essa revisão não significava, entretanto, a aceitação das verdades da fé, mas o reconhecimento de que, no decorrer da história, a fé cristã, não obstante os comprometimentos do ocidente cristão com formas injustas de estruturação da sociedade, foi também - nós diríamos foi sempre, na medida de sua autenticidade, - uma força libertadora para os pobres e oprimidos. Na América Latina teólogos católicos se sentiram no dever de pensar a fé em função da transformação da sociedade, "à luz da opção preferencial pelos pobres". Alguns assumiram o método de análise marxista que privilegia o conflito - a luta de classes - como ponto de partida de compreensão do processo histórico. Como o marxismo quis ser antes de tudo um pensamento voltado para a prática política de tipo revolucionário, as "verdades da fé" passaram a ser compreendidas em função da transformação social como motivadoras do respectivo compromisso político. Tendo na "luta de classes" a chave de leitura do processo histórico, inevitável a divisão da sociedade em dois grupos: o dos pobres "empobrecidos"- oprimidos e o dos ricos, opressores, os beneficiários da mais-valia. Ao diálogo é contraposta a dialética da luta de classes. 

Essa forma de pensar a dinâmica social, universalizada, aplicada às relações intraeclesiais, postulava uma reformulação do modo de ser Igreja, onde se tornava difícil a aceitação de uma Hierarquia. Esta palavra mesma se tornou suspeita dotada pelo Espírito do carisma da verdade e do governo na Igreja. Uma eclesiologia da igualdade, embora com alguma base na Lumen Gentium, exacerbou conflitos dentro da Igreja com forte repercussão nas instituições eclesiásticas de ensino e de formação. Mesmo as verdades reveladas sobre Jesus Cristo, sobre a Igreja e sobre o Homem começaram a ser entendidas em função da transformação social, correndo o risco de perder sua identidade irredutível, sua dimensão de transcendência. Nesse sentido o discurso de João Paulo II na abertura da Conferência de Puebla foi decisivo para manter a teologia do documento fiel à Tradição e, ao mesmo tempo, atenta às exigências do momento histórico vivido pela Igreja na América Latina. 

O documento de Puebla, ao tratar de "Evangelização, Ideologias e Política", analisando os vários tipos de ideologias, manifestou sua reserva à teologia que avançava nesta direção: "Recordamos com o Magistério pontifício que "seria ilusório e perigoso chegar a esquecer o nexo íntimo que os une radicalmente; aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação marxista, deixando de perceber o tipo de sociedade totalitária e violenta a que conduz tal processo (0A 34)". Cumpre salientar aqui o risco de ideologização a que se expõe a reflexão teológica, quando se realiza partindo de uma práxis que recorre à análise marxista. Suas consequências são a total politização da existência cristã, a dissolução da linguagem da fé no das ciências sociais e o esvaziamento da dimensão transcendental da salvação cristã. Ambas as ideologias assinaladas - liberalismo capitalista e marxismo - se inspiram em humanismos fechados a qualquer perspectiva transcendente. Uma, devido a seu ateísmo prático; a outra, por causa da profissão sistemática de um ateísmo militante" (DP Cap.2: 5,5). Em parágrafos anteriores, o mesmo documento fazia a seguinte advertência: "São correntes de aspirações com tendência para a absolutização, dotadas também de poderosa força de conquista e fervor redentor ( o grifo é nosso). Isso lhes confere uma "mística" especial e a capacidade de penetrar os diversos ambientes de modo muitas vezes irresistível. 

Seus slogans, suas expressões típicas, seus critérios, chegam a marcar profundamente e com facilidade mesmo aqueles que estão longe de aderir voluntariamente a seus princípios doutrinais. Desse modo, muitos vivem e militam praticamente dentro dos limites de determinadas ideologias sem haverem tomado consciência disso". O risco de uma ideologização da fé foi exaustivamente exposto pela Congregação para a Doutrina da Fé na Instrução "Libertatis Nuntius" (6 de agosto de 1984), assinada pelo seu Prefeito, hoje o Papa emérito, Bento XVI. (continua). 


Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba (domeduardo@arquidiocesesorocaba.org.br)

A Igreja contra os coronéis, artigo publicado em 2008 na História Viva


sábado, 22 de junho de 2013

Introdução do livro Utopias esquecidas. Origens da teologia da libertação.


O termo teologia da libertação indica tanto uma doutrina católica quanto um movimento político, social e religioso[1]. A fundamentação da doutrina foi publicada em 1971 por meio dos livros de Gustavo Gutiérrez[2] e Leonardo Boff[3] – e foi o próprio título do livro de Gutiérrez que cunhou o nome teologia da libertação, que também passou a designar eventualmente movimentos ocorridos anteriormente, na década de 1960. Portanto, os livros de Boff (Jesus Cristo libertador) e de Gutiérrez legitimavam estes movimentos e inspiravam-se nestes movimentos. No entanto, neste livro, aborda-se principalmente a fundamentação da doutrina. O problema que se coloca é: como os teólogos católicos Gutiérrez e Boff apropriaram-se de elementos do marxismo e construíram uma nova doutrina católica em 1971?

Diversos autores citados no livro Teologia da libertação apontam para o processo de apropriação de elementos do marxismo feito por Gutiérrez. Estes autores citados são: os teóricos marxistas Ernst Bloch e Mariátegui; os militantes marxistas Che Guevara e Fidel Castro; os teólogos Jürgen Moltmann, Wolfhart Pannenberg e Johann Baptist Metz; e o educador Paulo Freire.

  A partir de Bloch, Moltmann, Pannenberg e Metz, Gutiérrez defendeu a esperança ativa com vistas ao reino terreno da liberdade e o avanço da religiosidade para além da vida privada. A partir de Mariátegui, Guevara, Castro e Freire, Gutiérrez defendeu um pensamento e uma revolução comunista não ortodoxas, condizentes à história latino-americana. No primeiro grupo de autores – de Bloch a Metz – há as reflexões sobre marxismo, religião, história e política. No segundo grupo, há o apontamento de uma teoria da revolução latino-americana.

Boff também cita Moltmann e Metz com vistas à desprivatização da crença dos fiéis. No texto original do Jesus Cristo libertador, o teólogo brasileiro cita Ernst Bloch nas linhas finais do livro. Além disso, encontra-se nos textos de Boff – e também de Gutiérrez – trechos cuja natureza podemos classificar de blochianas.

Aqui vamos nos ater ao primeiro grupo de pensadores – de Bloch a Metz –, pois acreditamos que as chaves para a conjugação entre elementos do marxismo e do cristianismo desenvolvida por Boff e Gutiérrez estão nas reflexões sobre estes autores.

Nosso objetivo é aprofundar a compreensão e a discussão sobre a força social da utopia cristã popular na América Latina, que estava à vista e efetivada nas décadas de 1970 e 1980 e que atualmente está submersa e latente. Conforme indicação do filósofo Enrique Dussel, a força social da esperança católica popular latino-americana pode ser remontada desde frei Bartolomeu de las Casas, portanto, desde o século XVI[4]. Gutiérrez e Boff abriram um novo capítulo na história deste movimento social e a partir do seguinte desafio: como teorizar a construção de um mundo mais justo na segunda metade do século XX?

Ao buscarmos a resposta do problema aqui abordado também resgataremos algumas das utopias que – semelhante a outras – foram e ainda estão sufocadas pela hegemonia neoliberal. Resgataremos algumas utopias não para segui-las acriticamente, mas para propor uma discussão mais rica frente ao monólogo da desesperança, do capitalismo e do individualismo.



[1] LÖWY, Michael. Marxismo e teologia da libertação. São Paulo: Cortez, 1991.
[2] GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1986.
[3] BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador. Petrópolis: Vozes, 2008.
[4] DUSSEL, Enrique. Teologia da libertação. Um panorama de seu desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997.