sexta-feira, 19 de julho de 2013

Teologia da libertação e o primeiro governo Lula. Apontamentos prévios e críticas.

Foto emblemática da vitalidade da esperança no primeiro governo Lula.

Uma flexibilização da Teologia da Libertação significa um retorno a elementos da Doutrina Social da Igreja proposta por João XXIII e de Paulo VI (o catolicismo progressista), ou seja, a marginalização dos aspectos mais conflitantes da luta de classes.

Movimentos, leigos e sacerdotes defensores da Teologia da Libertação formaram uma importante base para o Partido dos Trabalhadores nas décadas de 1980 e 1990. Com a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder na esfera federal na figura de Luiz Inácio Lula da Silva, alguns dilemas se apresentaram aos defensores da Teologia da Libertação e ligados ao PT: alguns saíram do PT para formar o PSOL, como Plínio de Arruda Sampaio, em 2005. Tais dilemas estariam baseados no conflito Projeto de Poder/Projeto Social. Frei Betto afastou-se do governo Lula no final de 2004. Patrus Ananias, por outro lado, manteve-se inserido no primeiro governo Lula.

Frei Betto foi Acessor Especial da presidência em 2003 e 2004 e foi um dos coordenadores do programa Fome Zero. O Fome Zero tinha como objetivo o investimento em políticas públicas voltadas para os mais pobres com ênfase na emancipação econômica e no fim da miséria. No final da década de 1960, Frei Betto integrava um grupo de dominicanos que acobertavam integrantes da Ação Libertadora Nacional (ALN). Devido à sua relação com um grupo de oposição ao Regime Militar, Frei Betto estivera preso entre 1969 e 1973. Após a Anistia em 1979, Frei Betto tornou-se um dos porta-vozes da Teologia da Libertação e publicou diversos livros, entre eles: Batismo de fogo e Fidel e a religião. Em 2006, Frei Betto publicou o livro A mosca azul, em que aponta a deturpação do Partido dos Trabalhadores no poder e a ambição e cobiça de integrantes do PT. Segundo Frei Betto, Lula trocou um bom programa por um programa ruim, ou seja, o Fome Zero pela Bolsa Família. Para Betto, isto ocorreu devido ao projeto de poder do PT, que cedeu parte do controle do programa Fome Zero aos prefeitos, o que fez com que aumentasse a corrupção e, posteriormente, fez com que o programa fosse desmantelado.[1]
 
Patrus Ananias foi ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome desde 2004. Formou-se em Direito e foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores em Belo Horizonte, Minas Gerais. Foi prefeito de Belo Horizonte entre 1993 e 1996. Em 2002 foi eleito deputado federal. Tem artigos publicados em diversos jornais e revistas. Ananias manteve-se integrado ao PT mesmo após o caso do Mensalão em 2005, quando petistas foram acusados de tráfico de influência e de compra de votos de parlamentares. O Mensalão foi o estopim para diversas dissidências de integrantes do PT, que passaram a compor o PSOL.

A existência de defensores da Teologia da Libertação integrados ao primeiro governo Lula indica três questões: a relação entre religião e poder temporal; entre intelectuais e política; entre marxismo e democracia.

Para a Teologia da Libertação não existe neutralidade, ou se está do lado dos oprimidos ou dos opressores. Gutiérrez defende que o sacerdote católico deve ser um intelectual orgânico dos grupos sociais da classe baixa. Patrus Ananias é um intelectual orgânico de um partido político e se diz comprometido com as bases populares. Daí a questão: como ele conciliou Teologia da Libertação com as concessões e as alianças do PT com partidos ligados à burguesia?

Elide Rugai Bastos e Walquíria Leão Rego apontam dois perigos que cercam o pensamento crítico do intelectual: a apologia e a indiferença. Assim, teria Patrus ficado cego por sua proximidade com o PT ou teria ele se comprometido com um projeto de desenvolvimento social?

Por outro lado, a arena dos conflitos pela hegemonia de determinados poderes simbólicos do Brasil entre 2003 e 2006 é distinto do cenário em que nasceu a Teologia da Libertação.

Entre 2003 e 2006, no Brasil, a luta pelo poder simbólico é condicionada em grande parte pelos jornais, internet e principalmente pela televisão. Neste cenário marcado pelo poder simbólico midiatizado, intelectuais são medidos pela popularidade na grande mídia. Nesse sentido, jornais e televisão controlam a agenda do debate público e cria um público para estes debates.

A partir deste cenário midiatizado, o pensador italiano Salvatore Veca defende que o intelectual não deve ser político, e se for, que não seja como um intelectual. Por um lado, Veca quer livrar os intelectuais do poder da grande mídia, por outro, defende o político profissional como modelo positivo de atuação política. Nesse sentido, Patrus é primeiramente um político profissional e Frei Betto é primeiramente um intelectual católico.

A partir de tipologias, Frei Betto seria um intelectual orgânico dos grupos sociais pobres e explorados, um especialista no governo Lula em 2003 e 2004, um ideólogo do consenso e do dissenso fora do governo Lula, um intelectual de vocação teórica e critica e não afeito à política profissional.
 
Com relação à Patrus Ananias, nossa hipótese é a de uma leitura flexível da Teologia da Libertação. No entanto, uma flexibilização da Teologia da Libertação significa um retorno a elementos da Doutrina Social da Igreja proposta por João XXIII e de Paulo VI (o catolicismo progressista), ou seja, a marginalização dos aspectos mais conflitantes da luta de classes. Ainda assim, as tipologias da ciência política permitem apontar hipóteses: Patrus seria um político profissional, cuja organicidade com as bases populares esgarçou-se e cuja vocação teórica e crítica foi refreada. Por outro lado, seu papel como ideólogo do consenso do governo petista é sobrepujada por seu papel de especialista no governo Lula.

 Acerca da famosa frase de Marx, a religião é o ópio do povo, o sociólogo Michael Löwy, diz que esta frase não cabe a Teologia da Libertação. Para Löwy, esta corrente do catolicismo é revolucionária, anticapitalista radical e socialista.[1]

No entanto, seria o governo Lula uma espécie de revolução passiva – manutenção de estruturas capitalistas por um lado e transformações estruturais em benefício das classes mais baixas por outro?

Para o sociólogo Mauro Iasi – membro do PCB, aliado do PSOL e do PSTU – a crise do comunismo internacional e a reorganização do sistema produtivo nas décadas de 1980 e 1990 impingiu barreiras à organização, mobilização e à consciência de classe dos trabalhadores. Em contrapartida, segundo Iasi, o PT distanciou-se dos trabalhadores e aliou-se a setores e partidos da ordem capitalista. A social democracia seria uma ilusão e a social democracia petista, devido ao cenário produtivo e internacional, seria ainda inferior à social democracia européia. Ainda segundo Iasi, O PT tornou-se um partido representativo – reflexo – de uma pequena-burguesia conformada significativamente por burocratas de sindicatos, dos fundos de pensão e do próprio partido.[2]

Para Marcelo Badaró Mattos, um dos fundadores do PSOL, o PT marginalizou o projeto socialista e enfocou as práticas eleitoreiras – alianças e concessões com vistas a votos. Assim como Iasi, Mattos entende que o cenário internacional enfraqueceu a organização e a mobilização da classe trabalhadora brasileira, um dos motivos pelos quais o PT distanciou-se das bases populares em direção à alianças com a burguesia e às concessões ao mercado.[3]

Se o PT transformou-se em um partido organicamente ligado a uma pequena-burguesia, o que explicaria a permanência de um defensor da Teologia da Libertação no partido e no governo de Lula? Se insinuarmos que Patrus apropriou se dos anseios populares em seus discursos com vistas a manutenção do PT no poder, então entraremos no terreno do populismo. No entanto o populismo se cristalizou como um conjunto de características políticas e sociais de um determinado período histórico da América Latina, um período marcado pela crise das oligarquias agrárias, substituição de importação, industrialização regional, emergência das massas, guerra fria, nacionalismo e, segundo Werfor e Iani, manipulação dos trabalhadores e demagogia por parte de uma elite que ocupou o poder – outros pensadores, como Alberto Aggio, entendem que este período foi marcado pela revolução passiva, ou seja, conservação e transformação.[4]

O contexto em que o PT ocupou o Estado entre 2003 e 2006 foi outro: neoliberalismo, globalização e enfraquecimento da organização e mobilização dos trabalhadores. O próprio PT não seria um partido da elite, mas um partido reflexo de uma pequena burguesia. Iasi ainda argumenta que o PT é um partido ligado a burocracia estatal. O próprio Patrus estava inserido nesta burocracia, era um advogado trabalhista a serviço dos sindicatos. Por outro lado, Mattos indica que o PT expandiu os horizontes “eleitoreiros” na direção dos trabalhadores informais e dos mais miseráveis, principalmente por meio do assistencialismo, o Bolsa Família.[5] Nesse sentido, o lulo-petismo seria distinto do populismo, mas manteria a manipulação e a demagogia sobre os grupos populares.

O fato de Patrus Ananias ter pertencido a burocracia sindical explicaria sua permanência no PT ao contrário do sacerdote Frei Betto e de intelectuais acadêmicos. Entretanto, o discurso de legitimação de Patrus acerca de sua permanência no PT e no governo não seria sua ligação com a burocracia sindical, mas baseada na Teologia da Libertação e no catolicismo progressista de João XXIII e Paulo VI. Patrus não se silencia frente às críticas ao programa social mais conhecido e polêmico do governo Lula, o Bolsa Família. Patrus desenvolve um discurso legitimador do programa apoiando-se em pensamentos esquerdistas ou esquerdizantes, principalmente em correntes católicas que conformam o catolicismo progressista e a Teologia da Libertação.

Neste cenário de política midiatizada e de desgaste da atuação pública do intelectual, Bastos e Leão Rêgo apontam a existência de um grande fosso entre o intelectual e o político profissional.[6] O PSOL não deixa der ser uma tentativa de resolver este problema. O PSOL é um partido formado significativamente por intelectuais acadêmicos guiados pela teoria marxista e formado a partir de dissidentes do PT, um partido sem bases teóricas fixas e claras e marcado pela política profissional a partir de meados da década de 1990. Um dos dilemas do PSOL estaria em conciliar a teoria marxista com a conquista de espaços simbólicos (dominada pela grande mídia de natureza liberal) e sem fazer concessões e conchaves com o “inimigo”. Por um lado, os intelectuais do PSOL ficam presos à teoria marxista, por outro, Patrus Ananias prende-se à política profissional e descaracteriza a Teologia da Libertação.

Para Domenico Losurdo, os intelectuais de esquerda foram responsabilizados pelas atrocidades do comunismo soviético. Por outro lado, segundo Losurdo, não há como o intelectual ser neutro politicamente e não há como fugir das responsabilidades sociais. Para o pensador italiano, acreditar no desenvolvimento espontâneo e natural das sociedades é uma ingenuidade e também uma forma de legitimar o projeto social e intelectual do capitalismo.[7]

A Teologia da Libertação perdeu muito de sua força social precisamente após a Queda do Muro de Berlim. Assim como os marxistas, os defensores da Teologia da Libertação foram responsabilizados pelo fracasso do comunismo soviético. As estratégias do PT a partir de meados da década de 1990 não deixam de ser uma forma de fugir destas acusações e uma forma de conquistas de espaços de poder simbólico.

Norberto Bobbio desenvolveu dois tipos de atuação intelectual no mundo político: o ideólogo (construtores do consenso ou do dissenso) e o experto (especialista, “conselheiro do príncipe ou daquele que deseja ser príncipe”) que correspondem respectivamente ao princípio-fim e o conhecimento-meio. Não obstante, um mesmo intelectual pode atuar como ideólogo em um determinado momento e atuar como experto em outro.[8]

Frei Betto encaixa-se no tipo ideólogo, com exceção dos dois anos em que foi assessor especial da presidência. Antes de 2003, Frei Betto foi um ideólogo construtor do consenso esquerdista e do dissenso com relação à ditadura militar, da sociedade capitalista e do neoliberalismo. Após 2004, ele continuou a construir o consenso esquerdista e o dissenso com relação à sociedade capitalista e o neoliberalismo, mas também construindo o dissenso com relação ao governo petista – não obstante seus pequenos espaços de exercício do poder simbólico. Em 2003 e 2004 ele atuou como um especialista em desenvolvimento econômico e políticas de igualdade social para quem cabe as decisões, o presidente e ministros. Os dilemas de Frei Betto estaria em conciliar seu papel de especialista no governo e sua vocação de intelectual teórico e crítico.

Também neste sentido, Patrus Ananias insere-se no primeiro governo Lula como um especialista em desenvolvimento social e políticas de igualdade social, conciliando ao papel de especialista sua atuação como político profissional. Sua atuação como construtor do consenso petista foi secundaria, em parte também devido aos poucos espaços de exercício de poder simbólico na grande mídia.



[1] LÖWY, Michael. Marxismo e Teologia da Libertação. São Paulo: Cortez Editora, 1991.
[2] IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da consciência de classe. O PT entre a negação e o consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
[3] MATTOS, Marcelo Badaró. Reorganizando em meio ao refluxo. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2009.
[4] AGGIO, Alberto. A emergência de massas na política latino-americana e a teoria do populismo. In AGGIO, Alberto & LAHUERTA, Milton (org.). Pensar o século XX. Problemas políticos e história nacional na América Latina. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
[5] MATTOS, Marcelo Badaró. Reorganizando em meio ao refluxo. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2009.
[6] BASTOS, Elide Rugai & RÊGO, Walquíria Leão. (org.). Intelectuais e política. A moralidade do compromisso. São Paulo: Editora Olha d’Água, 1999.
[7] LOSURDO, Domenico. Os intelectuais e o conflito: responsabilidade e consciência histórica. In BASTOS, Elide Rugai & RÊGO, Walquíria Leão. (org.). Intelectuais e política. A moralidade do compromisso. São Paulo: Editora Olha d’Água, 1999.
[8] BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: Editora UNESP, 1997.


[1] BETTO, Frei. A mosca azul. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2006.

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